No alforge da ousadia levava latente uma ânsia concreta que vagueará também no decorrer destas páginas: auto-encontrar-me nos horizontes íngremes da psiquiatria, esta medicina da alma que ainda se esconde, estigmatizada, nas quatro paredes de que o mundo é feito.
Como vais da alma? Às vezes não se pode dizer. Não se consegue mesmo dizer. Ou não é bom escutar-se. Esta percepção tenho-a hoje bem agrafada à pena dos pensamentos que movem e comovem a pena que vos escreve. Nas eternas procuras e demandas que pelos caminhos de sentidos a vida me leva ou motiva, passei parte do mês de Agosto como voluntária numa Casa de Saúde Mental. No alforge da ousadia levava latente uma ânsia concreta que vagueará também no decorrer destas páginas: auto-encontrar-me nos horizontes íngremes da psiquiatria, esta medicina da alma que ainda se esconde, estigmatizada, nas quatro paredes de que o mundo é feito. E encontrando-a, vestir-lhe as palavras com as vestes de que se desenham os sentidos, escutar o pulso dessa mão que se conduz à margem do que dizem essas preces, trocadas apenas porque urge tocar, e calar o silêncio na oração do que se faz incómodo.
Dos primeiros confrontos com as residentes relembro um estilhaço de preconceitos estridente, audível ainda hoje no eco da ignorância reavivada e revisitada. Tocar os limites e ver que tudo é tão perto. Mais tarde, com os dias a desenharem-se de rotinas, senti por vezes o entusiasmo em isquemia, e uma consciência profunda e progressiva da fragilidade da vida, a par de uma percepção paradoxal e igualmente íntegra da força de cada história pessoal única. Houve dias em que as lágrimas precipitaram o verter lento de um choro amargo, pesado, calado pela interrogação inquieta e insaciável perante a incógnita perene do sofrimento psíquico, do sofrimento humano.
Mas não obstante, ou por isso mesmo, impressionavam a simplicidade e autenticidade na felicidade acolhida e recolhida. Longe de preconceitos e estigmas exteriores, na infinita distância de um coração preenchido da sabedoria que aceita, dá e recebe, o desafio da auto-transcendência alimentava-lhes a ânsia de existir e ser. Construindo elas mesmas, com as suas vidas e histórias únicas, o combustível que fazia mover aquela casa, uma casa de sonhos e esperanças, afinal, uma casa de saúde.
Revolvendo as interrogações, no absurdo de um sofrimento que paralisa quando experimentado na curta distância de uma porta que vigia perplexa; na impotência de uma palavra com a magia usual do poeta; na incapacidade de um sorriso que não cativa em espelho, e de uma mão que flutua sem cais certo onde ancorar; perante todo este labirinto de mistérios - orgânicos, psíquicos, existenciais, vivenciais, relacionais - de que se desenha a mente humana, cuja única chave parece encerrar em si mesma o próprio mistério inacedido, existia uma linguagem que afastava barreiras e destruía raivas e mágoas; restos do fermento que transforma o sonho em vida adiada: a linguagem do afecto. De um amor experimentado na raiz. Na alma e na pele, a aceitação incondicional do outro como é, e não como gostaríamos que fosse, porque não gostaríamos que fosse assim: mal-formado, deprimido, deficiente, esquizofrénico, bloqueado numa história que aos nossos olhos não pula nem avança nem se pode dizer.
Para a vida levo estas pessoas, imito os nomes nas páginas que penso, abraço as histórias escritas e revisitadas. A Teresa que todos os dias de cada dia me pedia que lhe contasse as palavras de um postal deixado por outros como eu, comovidos ainda na distância da vida cá fora, com as suas gargalhadas sonoras; da Teresa, feliz, só movia a cabeça. A Clarisse que ria da vida, sem raiva, sem mágoa, trazia agarrado ao peito um colar de palavras a contar axiomas da vida, que repetia; e repetiam-se, não fosse esta a última vez que alguém ali se sentasse e escutasse: podes dizer, da tua vida, Clarisse. Hei-de ouvir até que alma doa.
A Margarida ia falecer todos os dias, e todos os dias as lágrimas reflectiam essa morte de quem tem a alma com mais sal que calor. Mas um dia o rosto sorriu, e a Margarida ouviu dentro os ecos do que se dá até depois do tempo. Depois disse, vou ter saudades tuas. E nunca mais a vi chorar, até hoje. A Cláudia, que viu um coração verde esperança num trevo recolhido do mais fundo do chão. A Idalina, a quem inúmeras vezes acompanhei na escovagem dos dentes, como a vida, delicados; a Eugénia, avó pelos laços de quem permanece no apelo à atenção constante; a Isabel, minha melhor amiga da infância que inventara para entreter a solidão e o vazio; E a Fátima, que sem os nossos olhos, reconhecia tão bem as marcas dos lençóis das camas que acomodava em cada manhã, como reconhecia e entendia o dom de aceitar viver e optar pela felicidade que só se vê bem com o coração. E escreve-me ainda. Com as palavras do que é simples, inocente, mas sentido. E os outros nomes, tantos, agarrados ao papel, à tinta, à alma dilatada.
Para a vida levo lições que espero que o tempo releve e cimente. A possibilidade da medicina, enraizada na ciência e rigor dos que sabem inclinar, encarada como missão; o desafio de entender cada capacidade feita dádiva e talento; o fermento das fragilidades como eixo de sentido; as encruzilhadas de demandas e procuras cujo eterno retorno são aqueles que partilham o tesouro comum, e nos recolhem no cofre da autenticidade e verdade que somos; a inutilidade das pressas e ansiedades que roubam ao presente a possibilidade única e mágica de se fazerem sem tempo.
Fico por aqui nas palavras, para que dos fragmentos não escritos fermente o silêncio necessário a cada sentido, a cada história não contada, a cada pessoa, ou sonho, não ouvidos. E pontuo. Podes dizer, como vais da alma. Aqui também é pelo sonho que vais…
Célia Soares in"A Voz do Minho", Setembro 2009
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