[...] podemos sempre escutar e dizer, se fazemos da nossa vida algo extraordinário, que nos transcende em voz e alcance; ou se, pelo contrário, rastejamos inseguros, entre desânimos e outros vícios que levam o leme recolhido, devolvendo os remos daqueles que se conduzem pela margem.
Das asfixias aos tóxicos que inflamam a vida, como vais dos sonhos roubados às palavras ditas, e repetidas?
Entre o barro e o vento, como vais da alma? Das asfixias aos tóxicos que inflamam a vida, como vais dos sonhos roubados às palavras ditas, e repetidas?
Para muitos de nós, vai sendo ainda tempo de reinícios latentes. Lectivos ou outros, a vida urge (quase sempre) recolher um fio deixado mais ou menos solto na âncora fatigada pelas histórias do que passou. Uns retomam as rotinas do ontem repetido, outros mergulham trémulos no abismo incerto, imposto ou feito demanda. De barro ou de vento, entre ritos fatalistas e desafios da liberdade que transforma, arriscaria dizer que tempo de mudança, pode ser tempo de olhar e ver, este eixo que nos faz e dirige. Eternamente frágeis, como o barro que se molda aos conformismos de uma condição limitante, mas não obstante, munidos dessas asas voadas pelo vento que se faz sonho, podemos sempre escutar e dizer, se fazemos da nossa vida algo extraordinário, que nos transcende em voz e alcance; ou se, pelo contrário, rastejamos inseguros, entre desânimos e outros vícios que levam o leme recolhido, devolvendo os remos daqueles que se conduzem pela margem.
Na sequência das páginas retomadas no mês passado, dizia pretender vaguear pelas palavras nesta arte de sulcar os horizontes da psiquiatria, íngremes, labirínticos, paradoxais. Recolho por isso, também eu, esse fio ancorado, falando-vos hoje de dois nomes distintos na forma do que se lê, mas semelhantes na essência partilhada dos que buscam sentido nos limites de um existir isquémico e difuso: num campo de concentração nazi, numa casa de saúde mental. Refiro-me ao psiquiatra, professor e escritor Viktor E.Frankl, e ao mítico Patch Adams, médico norte-americano, contracenado por Robin Williams na produção cinematográfica que retrata parte da sua biografia. Na verdade, ambos mostram que a vida ainda pode ter sentido quando nada tem sentido. Abraçam o barro com o peito, e de amor e humor em riste visível, procuram no vento que os leva um sentido que ampliam, descentrando-se deles mesmos, e afastando-se da auto-realização como meta encerrada em si mesma.
Não obstante a doença mental ter imensas vezes etiologia orgânica, cuja ignorância tem nutrido preconceitos e vícios outros, ou multifactorial, quando há outras variáveis acrescentadas aos factores que são próprios da fisiologia do individuo, existem outras componentes de relevo, como a subjectividade que envolve e resolve a personalidade, entre emoções e relações, a vida e os seus sentidos, melhor ou pior direccionados.
A medicina, ainda que progressivamente se sirva dos avanços científicos, técnicos e administrativos, imita a vida nas suas imprevisibilidade e autenticidade, desenhando como ninguém as histórias com os riscos que escrevem a distância a que a realidade permanece dos melhores sonhos. Daqui se depreende que a psiquiatria, com as respectivas perícias de diagnóstico e prognóstico características, atribua a devida primazia às incertezas e aos desvios de direcção, aos sentidos ausentes perante a eterna circularidade dos retornos, à discrepância entre o que aceitamos e aquilo que resignamos, às palavras enfim, que engolimos até à toxicidade que inflama a alma e paralisa as cinéticas do que (co)move. Nem sempre é fácil entender, e escutar dentro, que aquilo “que realmente importa não é o que nós esperamos da vida, mas antes o que ela espera de nós.” [Frankl]
É quase cliché dizer-se que o abismo entre o que queremos e aquilo de que precisamos para sermos felizes é inútil, absurdo talvez. Como absurda é a ausência de um sentido ou eixo que se veja com os olhos que diluem a toxicidade dos estados depressivos ou neuróticos, das euforias e dos distúrbios sem a medida do que real que é. A psicofarmacologia avança rapidamente, e, se por um lado, cada vez mais as patologias psiquiátricas têm um factor terapêutico objectivo, por outro lado, talvez se esteja a descorar que um psicofármaco corrige apenas um buraco temporário que toda uma vida, por vezes, sulca sem entender…
Não há, nem haverá, certamente, princípio activo que transforme a história vivida, a família, as relações, as opções e os confrontos do passado em bálsamos e alquimias que convertam o barro em vento, e recolham esse fio ancorado no cansaço de um mar sem fim. Frankl e Patch Adams encontraram sentido para a sua vida, doando-a aos outros, na consciência de quem sabe o que tem e o que é. Porque entre fármacos e sonhos roubados às palavras que se dizem, emergiu talvez, íntegra e segura, a certeza de que eles mesmos eram profunda e escandalosamente responsáveis perante a necessidade emergente de fazer da vida algo extraordinário, feliz, naquele sempre que já começou.
E tu, onde procuras esse leme, esses sentidos, desses rumos, o que sentes? Como quem diz, em tom interrogado, difuso, inclinado - Onde estás, entre o barro e o vento? Podes dizer.
Célia, in "A Voz do Minho", Outubro de 2009
imagem:http://www.amar-tesomente.blogspot.com
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