Casa do medo, casa da Esperança

O Hospital como Lugar de Esperança


“Esperança
Quero que sejas
A última palavra
Da minha boca.”
(Miguel Torga)

[...] Afinal, não será de todo ridículo sublinhar o contracenso: mais esperança no tempo, menos tempo para a esperança.[...]

CS, in "A Voz do Minho"
 Abril de 2009


Muralha

Começamos a entender que há um porto que segura ânsias e fragilidades quando nos agarram pedaços incertos de um coração insuficiente. 
Um lugar onde nada existe mas onde subsiste sempre e para sempre a âncora que nos devolve à vida. 
Um tempo sem tempo onde tudo pára para experimentar a eternidade que se desenha. 
Mesmo quando as lágrimas desidratam a vitalidade do corpo e mente exaustas, há um aqueduto sagrado que as transporta para longe da estrada onde a luz se faz.

 Há sempre uma muralha perene onde agarramos a alma como um tesouro oferecido sem remetente.


S.O.S.

Save Our System

Eram duas depois do meio daquela noite. Entrou, cuidadosa, e sentou-se.
Tinha tosse. Congestão nasal e episódios de afonia recidivantes.
- e como é que se chama?
Esqueceu a resposta. E continuou.
Estava mal, era de noite e tinha falta de ar.
- dispneia?
Não entendeu e prosseguiu o relato da dor que ninguém via. Nem a gasimetria, nem o esfigmomanómetro, ainda menos o ECG. Os sinais vitais diziam que estava normal.
- normal.
Mas tinha perdido 20 kg desde o ano passado. Uma cirurgia para redução mamária e um prontuário terapêutico móvel. A culpa era do sistema nervoso.
- mas de doenças, não tem mais nada?
- não durmo.
- pela dispneia? Pela tosse? Tem dor?
- não. Deve ser do sistema nervoso.
Padrão de sono normal – registou.
- Para além do antibiótico e do broncodilatador, não toma mais nada?
- de medicamentos não. Só tomo uns comprimidos para o sistema nervoso.
Normal.
Raio-x torácico normal.

Diagnóstico diferencial com a vida: não tinha nada. Apenas sofria.
Mas a base de dados não conhecia a palavra sofrimento. 

 imagem:http://blog.apeloeh.com

Rascunhos paralelos


riscos horizontais recalcados a tinta negra numa folha branca, não são apenas nada.
riscos horizontais recalcados com a mão firme são a ponte para a sensibilidade de quem escuta mais do que aquilo que se vê. 
Estes riscos horizontais partilhados tornam-se rectas infinitas de uma verticalidade possível.
 
riscos, que são?
traços reais para aqueles que perscrutam quem somos.
 
imagem (adaptada): ardemares.blogspot.com

With every beat

.. of my heart,
e nem isso basta.

por vezes a expectativa deve cingir-se apenas à fidelidade das palavras que viajam pelas mãos que bordam as margens e os limites. - e suster a respiração para não ouvir -. como estas.

(mesmo aquelas que ficam por dizer, não descartam a lealdade ao pensamento a que dão forma. felizmente.)

A Carta


Remetente: Casa de Sonhos
Destinatário: À procura de um ideal

A carta chegou logo no dia seguinte.
Não devo saber ainda como agradecer a urgência das palavras que desenham o afecto, mas devolvi a resposta assim que encontrei uma caixa de correio por perto. Gosto deste ritual. Do cheiro a sinceridade na tinta do papel, da humildade em cada pensamento embutido nos factos partilhados. E arrepia-me pensar que às vezes um e-mail ou uma mensagem de telemóvel ficam suspensos só porque não apeteceu, quando sinto o tacto nas ranhuras de um postal feito com as mesmas mãos que o desenharam:

“Só quem tem um ideal encontra razões para viver.“

Na memória que o seu nome me oferece, a Maria vive numa Casa de Sonhos. O lugar onde a amizade se escreve com letra maiúscula, e onde a fé reside à cabeceira da alma, só pode ser uma Casa de Sonhos. E não deixa de ser também uma Escola de Medicina, aqui onde as limitações são constantes; aqui onde a morte acontece mesmo ao lado da vida que se celebra. Aqui onde se aprende o valor de cuidar dos eternos residentes que serão para sempre.

“Hoje em dia tem que se lutar muito pelo que queremos”, lembra-me.

Escuto e escrevo. Sei das lutas e do sofrimento, sei da mágoa e do vazio. E das desilusões. Como sei das pequenas conquistas, dos pequenos nadas. Das palavras que transportam o silêncio e o olhar dos que estão de bem com a vida.

Celebramos a partilha das palavras ditas, trocamos o sol e vimos o coração fotografar um abraço terno.

Da emoção ao alvo terapêutico


Não deixa de ser interessante verificar que grande parte das emoções que expressamos podem constituir sintomas de determinadas patologias.

A ansiedade. Se por um lado é uma forma de reagir antecipadamente a algo que se antevê difícil ou doloroso, também chamada “o medo sem rosto”, por outro lado, quando generalizada e desadequada ao estímulo, tem direito a categorização psiquiátrica.
O medo, possível motor de confronto e transgressão, predomina nos síndromes fóbicos, sendo causa de intenso sofrimento e incapacidade.
A tristeza como forma de adaptação à perda, um ingrediente ao luto necessário e saudável, é também o combustível que move a alma sem pressão. Ainda que sem lágrimas, apáticas e indiferentes, por vezes, as depressões conhecem bem a tristeza expressa.
A raiva, mecanismo de auto-defesa, resposta possível de auto-preservação, quando acumulada, além de corroer os pedaços de serenidade que ajudam a embalsamar a alma, pode estar associada à agressividade patente em crimes diversos.

Mais uma vez, é ténue a fronteira entre a emoção expressa no contexto de uma personalidade em confronto e esta como causa de mal estar psíquico, porque desproporcionada em relação ao estímulo que a causa, ou mesmo, persistindo na ausência de qualquer estímulo desencadeante.

Existe uma diversidade de fármacos disponíveis, e alguns deles são usados erradamente em situações que fazem parte do quotidiano normal e, como tal, essenciais ao desenvolvimento emocional. Eliminando-as, pode estar a contribuir-se para um desequilíbrio emocional: não é doença ter medo, estar ansioso ou triste, “É melhor ter os nervos como cabos/Entre a cidade Não e a cidade Sim”(Ievtuchenko)

Outra situação particular, que é considerada dopping, é a ingestão de bloqueadores beta (fármacos com utilidade na sintomatologia ansiosa) para diminuir o trémulo em jogadores de tiro ao alvo.

Curioso que a palavra patologia, vem do grego pathos (sofrimento, paixão, doença) e logia (ciência, estudo), estando ligada ao “padecer” no campo da filosofia. Um conceito que concretiza a relação entre emoção e doença, elucidando a possibilidade de um caminho entre aquela e o alvo terapêutico nesta última.

imagem: http://www.flickr.com/photos/manfrommanila/2365781490/

Podes dizer VI

do mau tempo. Entre traços e riscos.

 [..] porque a chuva ritmada obriga a memória a procurar agasalhos no sótão. No mesmo sótão onde nos contaram a história de quem nos tornamos, em vários capítulos.

      
Entre traços ou riscos, porque na ténue fronteira entre aquilo que define a nossa personalidade e aquilo que nos torna vulneráveis ao desequilíbrio, à perturbação. Não é um assunto pacífico. Não apenas porque os limites entre o patológico e o normal permanecem incertos, como também pelo facto de a personalidade ser mutável e vulnerável apenas dentro de um contexto, de uma história. O que é certo talvez, é que uma vez responsáveis pelo que sabemos de nós, somos também livres para optar fazer dos traços riscos ou, pelo contrário, sulcar bem fundo dos primeiros, aceitá-los e aprender a fazer deles refúgio seguro. Entre ventos e marés, é bom saber que podemos sempre contar connosco mesmos. [...]