Podes dizer VI

do mau tempo. Entre traços e riscos.

 [..] porque a chuva ritmada obriga a memória a procurar agasalhos no sótão. No mesmo sótão onde nos contaram a história de quem nos tornamos, em vários capítulos.

      
Entre traços ou riscos, porque na ténue fronteira entre aquilo que define a nossa personalidade e aquilo que nos torna vulneráveis ao desequilíbrio, à perturbação. Não é um assunto pacífico. Não apenas porque os limites entre o patológico e o normal permanecem incertos, como também pelo facto de a personalidade ser mutável e vulnerável apenas dentro de um contexto, de uma história. O que é certo talvez, é que uma vez responsáveis pelo que sabemos de nós, somos também livres para optar fazer dos traços riscos ou, pelo contrário, sulcar bem fundo dos primeiros, aceitá-los e aprender a fazer deles refúgio seguro. Entre ventos e marés, é bom saber que podemos sempre contar connosco mesmos. [...]


     Haiti, Madeira, Chile. A acrescentar, as inúmeras pequenas grandes catástrofes que o tempo a desfavor da ocupação humana veio trazendo consigo, do norte ao sul do país e além fronteiras. Irónico escrever propositadamente sobre o tempo, quando é precisamente este o assunto de que se fala quando nada há para (ou como) dizer. E hoje não vos trago mais metáforas, ou imagens escondidas no tesouro dos sentidos múltiplos. Hoje, escrevo apenas com as palavras que se podem ler. do mau tempo.
     Há  imensas questões que surgem quando a catástrofe se faz perto, como aquelas que referem às políticas de ordenamento do território, recursos, orçamentos e logística disponíveis para situações do género. Outras, mais interrogadas, flectidas, sulcam bem fundo a (in)justiça do mal que o mau tempo causa, a existência desse entre todos  em cada um que parece não presente, ou menos activo do que aquilo que o sofrimento e o desespero esperariam. Questões éticas sobre a ocupação humana de determinados territórios mais susceptíveis tornam-se também prementes.

     Com os tons de cinzento do céu, o frio, a força indomesticável do vento, por vezes, determinadas fragilidades psíquicas podem recidivar. Não consultei nenhum estudo recente, mas julgo ser tema de investigação na área da psiquiatria, uma incidência aumentada de depressões e outras perturbações mentais perante intempéries prolongadas que, pelos vistos, trazem à alma insónias e ao coração a passividade dos que apenas vão vivendo.

     Por outro lado, às vezes gosto de pensar que o mau tempo pode, afinal, ser uma espécie de catarse das mágoas e dos fantasmas. Como se a chuva removesse da alma os resíduos do inútil e do opaco. Para deixar o lugar vazio quando o sol chegar. É por isso que, logo pela manhã, costumo desenhar os traços do sol na humidade dos vidros da janela, mimetizando esse espaço de alma onde limpo a casa para receber a luz dos dias quentes, no aconchego da vida saboreada, não obstante a dicotomia meteorológica. É tempo também de nostalgias ou ausências outras, porque a chuva ritmada obriga a memória a procurar agasalhos no sótão. No mesmo sótão onde nos contaram a história de quem nos tornamos, em vários capítulos.

     Entre traços ou riscos, porque na ténue fronteira entre aquilo que define a nossa personalidade e aquilo que nos torna vulneráveis ao desequilíbrio, à perturbação. Não é um assunto pacífico. Não apenas porque os limites entre o patológico e o normal permanecem incertos, como também pelo facto de a personalidade ser mutável e vulnerável apenas dentro de um contexto, de uma história. O que é certo talvez, é que uma vez responsáveis pelo que sabemos de nós, somos também livres para optar por fazer dos traços riscos ou, pelo contrário, sulcar bem fundo dos primeiros, aceitá-los e aprender a fazer deles refúgio seguro. Entre ventos e marés, é bom saber que podemos sempre contar connosco mesmos.

     Chovia quando comecei a escrever e continua depois deste ponto final. Não sei se acrescentei algo mais ao leitor que os repetitivos jornais e programações televisivas têm sucessivamente reportado, habituados, desde sempre, à catástrofe, ora atribuída ao homem (políticos, populares), ora atribuída à natureza, ao tempo. Se no primeiro se diz que a culpa morre solteira, e isso nos intriga, quanto a este último aspecto, presenciamos a culpa, fértil junto ao terreno da alma, a semear a incerteza que faz crescer a mágoa e o desespero. Ou o perdão, quando a fragilidade da vida consegue lembrar-nos que há sempre tempo para aquilo que nos faz sorrir, mesmo quando o único raio de sol que se vê é aquele que desenho com o dedo, no vidro húmido, quando me levanto.

     (Ou quando invento metáforas como se não houvesse tempo depois de amanhã, mesmo tendo prometido que hoje nada estaria entre duas linhas ou dois parêntesis.)

 in A Voz do Minho, Março/10

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