Casa do medo, casa da Esperança

O Hospital como Lugar de Esperança


“Esperança
Quero que sejas
A última palavra
Da minha boca.”
(Miguel Torga)

[...] Afinal, não será de todo ridículo sublinhar o contracenso: mais esperança no tempo, menos tempo para a esperança.[...]

CS, in "A Voz do Minho"
 Abril de 2009





Esperar no compasso da Crise. Em três frases, três palavras a imitar os ritmos de quem espera activamente. Triângulo descontextualizado talvez, visto que a cultura destes tempos, sabemo-lo bem, vive em crise agudizada e permanente, apagando das memórias os sentidos ditados à história que lembravam: enquanto há vida, há esperança. O desespero da espera parece ter descolado à alma a certeza de que a esperança já soube ser a última palavra a morrer das nossas bocas. É talvez tempo de repensar quem se perde na espera: quando a morte e o sofrimento roubam as palavras à vida, que lugar existe para acreditar, confiar e saber ser essa “mortalha de sol” que dissolve a bruma na esperança?



A casa dos medos projectados. Há quem diga que enquanto há medo não há esperança, e os hospitais são talvez o lugar onde os nossos piores fantasmas se vestem e adormecem, incertos. Esquecendo ou desvalorizando que estes são também o berço da vida e do renascimento e redireccionamento para esta, mais ou menos conscientemente, depuramo-nos dos nossos medos e receios projectando-os na imagem que temos do hospital. Mas isto não fere, muito pelo contrário, a convicção de que este pode ser um paradigmático e infinitamente fértil lugar de esperança: porque há vida, e porque há morte; porque esperamos e confiamos que os prestadores de cuidados nos façam um bom diagnóstico, uma terapêutica eficaz e que nos devolvam a identidade perdida na eminência da fragilidade a dissolver quem somos sempre.



Progresso, ciência e novos modelos de gestão. Fala-se de um paradigma humanista substituído por um paradigma de prestação de serviços, num sistema de saúde que já conhece bem a importância de quem numera as vidas contadas em registos e softwares, protocolos e guidelines. Parece querer encurtar o sofrimento nas histórias reduzindo-lhes ao tempo de cada vez que o doente e o profissional de saúde se encontram entre ânsias e pressas. Mas paradoxalmente, o progresso técnico e científico da medicina, inegável em variadíssimas vertentes e dimensões, trouxe-nos um aumento da esperança média de vida. Temos mais tempo para viver, mais tempo para esperar, mas apesar disso, ou por isso, parece que se vai cultivando um servir sem esse pedaço de eternidade possível ou provável. Afinal, não será de todo ridículo sublinhar o contracenso: mais esperança no tempo, menos tempo para a esperança. (Evidentemente, quando falo deste tempo, refiro-me à possibilidade de nos fazermos disponíveis dentro dele, não à medida objectiva em si como recurso.)



A dignidade de quem cuida e é cuidado. Ser hospital é testar permanentemente a chama da esperança que muito facilmente se faz cinza e sal. É o doente que a sente apagar, é o médico, o enfermeiro, o auxiliar, o assistente social, o voluntário, o assistente espiritual, que a tentam manter acesa, quando o “próprio alento atraiçoa a vontade”, e da esperança só resta incapacidade, fraqueza, impotência, sofrimento, desespero. Se sermos dignos é sentirmo-nos sem preço, inqualificáveis como meios e certos de que encerramos sempre um mistério único, não restam dúvidas de que por vezes esta dignidade de quem é cuidado e de quem cuida é colocada em causa. E como devolvê-la?



Escreveu José Régio que “vou pelo caminho do que sou para ser quem sou”, e penso que parte da resposta encontra-se aqui embrulhada no cobertor dos sentidos de “quem sabe dar alma às coisas”. Com a identidade devolvida por uma atitude trabalhada de verdadeiro cuidado profissionalizante e humanizado que sabe onde encontrar a pessoa no doente, é possível reacreditar no dinamismo da espera de quem sofre não como utopia mas topia, mais do que ideal, real. E o caminho do que somos, faz-se de quem somos, e somos quem nos deixamos fazer: quanto mais autenticidade relacional vivenciarmos simbolizada na palavra que melhor desenha os tons da esperança, o amor, mais pessoa em nós, certamente, encontraremos.



E depois da última esperança se fazer desespero? Acreditamos, muitos de nós, ser possível a dissolução da esperança, essa confiança indispensável a quem não se pacifica na espera em que se caminha e constrói. Será possível reactivar a esperança depois da esperança? Lembro quem escreveu que os hospitais são sem dúvida profícuos em oferecer ao tempo a oportunidade única de se fazer história nos laços do que é eterno, por toda a vida nas histórias de morte que acolhe, afinal, por toda a esperança encontrada no desespero. Se calhar, o ponto final pode sempre ser gritado aos ventos dos que connosco acolhem essa dignidade feliz de nos tornarmos e acreditarmos Esperança.

 

CS, in "A Voz do Minho", Abril de 2009

imagem:http://www.flickr.com/photos/ricappellaro/3953332345/

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