Axiomas imperfeitos

"O amor é um sentimento"
Diz-se frequentemente: o amor sente-se. O coração palpita e a palavra de ordem é “amo-te”.
Mais raramente, há quem argumente que amar é uma escolha, um resultado da razão consciente que opta por querer o bem da pessoa que se ama. M. Scott Peck  (1936-2005) define-o como “ a vontade de expandir o Eu com o objectivo de alimentar o seu próprio desenvolvimento espiritual ou o de outrem” (in O Caminho Menos Percorrido).
Para concretizar a lucidez do pensamento deste psiquiatra e autor americano, talvez seja interessante apontar alguns dos inúmeros absurdos praticados por parte de quem diz sentir amor mas só semeia solidão, frustração, depressão e ansiedade: relacionamentos repetidos, fugazes e vazios, nunca assentes numa base de compromisso consciente e responsável, dependências e obsessões, ciúmes, por pessoas que dizem amar mas não concretizam mais do que a vontade consciente ou inconsciente de satisfazerem uma necessidade ou desejo próprios.
 
"Amar é sofrer "
Mas e então, não se diz por ai que amar é sofrer? Que amor é fogo que dói..

Penso que amar implica uma boa dose de sofrimento, mas um sofrimento que é legítimo, inevitável. Por exemplo, veja-se o caso do amor próprio. Questionar preconceitos, arriscar no vazio, confiar, não é doloroso? E no entanto urge fazê-lo se nos estimamos e queremos amadurecer a capacidade de sermos felizes, ficar aptos para amar e agir em função do bem do outro. Contemplar e perdoar os nossos erros e imperfeições, mesmo aqueles que o tempo já quase enterrou, não nos leva tantas vezes ao desespero? Há algo mais difícil do que cumprimentar os nossos fantasmas com a cabeça erguida?

Gosto de pensar que estamos prontos para amar alguém quando conseguimos entender que conseguimos não amar esse alguém. Traduz a genuinidade da opção que se toma, assente na verdadeira capacidade de amar com liberdade. Um amor assim projecta, em vez de fechar, como tantas vezes acontece.

"Procurar um sentido para a vida"
Acontece muitas vezes termos como perdidas pessoas que dizem com corpo e alma que procuram incessantemente um sentido para a vida. Respeito, talvez até entenda. Até porque quem procura eternamente não anda certamente perdido. No entanto, o que me parece ser uma atitude de  genuína coragem é a de quem se atreve a dar um sentido à vida, em vez de esperar que seja a vida a servi-lo numa bandeja forrada de tempo e experiência.

A importância de dar um sentido à própria vida devia ser ensinada. Como devia ser ensinada a competência de saber ouvir, tal como defende Scott Peck, não se valorizando apenas a capacidade da retórica ou da escrita argumentativa, ainda que esta seja útil ao desenvolvimento da primeira.

Custa-nos aceitar os discursos vazios de políticos e administradores, os clichés que pregamos uns aos outros, os buracos que tapamos com retalhos de circunstância gastos. Mas talvez pior do que isso seja constatar que não entendemos que ninguém nasce já amado, nem ensinado, e que inevitavelmente a morte, em sentido real e figurado, é a única capaz de nos remeter à sabedoria do silêncio...

transcritos do intermitente


dúvidas?, sim.
mas não é sobre os mecanismos de acção, os efeitos adversos ou o uso terapêutico.

por favor, não perguntem se tenho dúvidas, 
quando apenas pedem que seja papel absorvente, despido da oportunidade de pensar e relacionar conceitos, adivinhar sentidos -
- sentidos em corredores labirínticos que cruzam a farmacologia com a falência terapêutica (também designada morte). 
  
E por favor, não me levem as palavras. 
Porque entre elásticos, transferências e outros mecanismos internos de gestão e digestão de emoções, estas palavras são fieis aos transcritos de uma isquemia  intermitente, e devolvem sem custos um silêncio lúcido e nítido, eficaz e concentrado daquilo que vale a pena,

(ainda que a alma não seja tão grande como a incerteza).

luto.

com letra minúscula, como quem transcreve uma dor menor.
com ponto final, para fingir o sentido que nunca se encontra quando o fim é concreto. a prateleira vazia quando a alma sofre e não deixa ver mais longe.

por mais bagagem que a vida nos obrigue a suportar, nunca estamos preparados para a morte.


Podes dizer


Da solidão em rede.
 
Facebook, Twitter, Messenger, hi5, Flickr, youtube, blogues, são exemplos das chamadas “redes sociais” que prendem qualquer um ao ecrã. Da vertente pessoal à mais profissional, com o intuito de vender ou apenas ver, os “amigos”, “seguidores”, “membros” proliferam a uma taxa vertiginosa, pelo que as empresas de marketing já não podem ignorar esta sociedade que se exprime através das teclas. E atrás de um ecrã, na verdade, estes cidadãos são capazes de quase tudo: desde combater a fome em África a protestar contra as portagens; trocar ideias para um trabalho académico ou resolver discussões ao ritmo do silêncio picotado pelas falanges cansadas.

Paradoxalmente, o tempo encurta porque em cada pedaço cabe muito mais. E as palavras degeneram os sentidos quando o espaço a tal obriga. É difícil negar a visibilidade do efeito de aglutinação, do peso da imagem que passa, ou da vida que se escreve com meia dúzia de caracteres num perfil formatado. Por aqui a vida é rápida, mas vai ficando cada vez mais rara à medida que a solidão se torna no parênquima (dis)funcional destas redes.

É talvez ainda cedo para avaliar o impacto que esta nova forma de socializar poderá ter. No entanto, já existem publicações que indagam sobre a possibilidade de alterações na estrutura de aprendizagem das crianças que hoje vêm ecrãs saltitantes em vez de quadros de giz fixo, ou que fazem pesquisa de informação sem precisarem de saber como folhear um livro numa biblioteca. Por outro lado, o sedentarismo a que estes novos modos de socializar obrigam deixa a sua marca e o seu peso: os profissionais de saúde conhecem-no bem demais. Por sua vez, a ciência escreve que fomos feitos para caçar ou fugir, e não para fixar o olhar horas a fio curvados numa cadeira paralítica.

Falo de solidão porque é disso que me lembro quando leio os comentários vazios de quem mostra muito pouco para ser nesse muito que expõe. Há mais vida para além daquela que imana do muro que nos cola ao silêncio: não somos apenas aquilo que dizemos a escrever, precisamos também daquilo que se revela no instantâneo do tempo que passou, sem ter sempre a medida exacta dos registos confidenciados ao teclado; precisamos de transpirar o corpo exausto de vida vivida, de chorar de dor e rir alto quando tiver que ser; de corar e ter vontade de desaparecer quando ouvimos mais do que aquilo que gostaríamos. Precisamos disso tudo para sermos pessoas menos sós. Com rede social (ou bóia de salvação) sempre presente, há uma parte da vida que se descarta ou reduz.

Acordar a meio da noite para alimentar um animal virtual de uma quinta inventada, há uns tempos atrás, lembraria muito pouco uma personalidade saudável. O mesmo para os exércitos de crianças, adolescentes, jovens e pseudo-adultos mimados e frustrados, habituados desde cedo à rapidez dos “copy & paste” e das pseudo-relações que nunca lhes privaram o sono. Há insucesso escolar e violência, desequilíbrios mentais, emocionais e sociais, e ninguém entende porquê. E fala-se de suicídio como se de uma opção de vida simplória se tratasse. (Quase como quem opta por ir ao supermercado sempre que a vida é demais.) É um facto que há tentativas de pôr fim à vida que nenhuma aproximação à razão entende, mas não se pode reduzir tudo à ignorância jornalística de quem tem interesses que nenhuma tentativa de aproximação à profissão pode aceitar. 

Simpatizo pouco com acessos de fúria de Velhos do Restelo a reclamar da hegemonia das tecnologias. Mas há momentos em que a confusão e desvario social são de tal amplitude que não é possível ignorar-se que a proliferação das redes sociais sem argumento nem fundamento terá que ter consequências mensuráveis para alguém. E é pena se forem os psiquiatras os primeiros a terem consciência desses números que a solidão em rede multiplica.

Cs, Abril 2010
Imagem: Filipa Cruz

De que morte temos medo?

E a dor?, perguntou a si mesmo. Que é dela? 
Então, dor, onde estás tu? Ficou atento. 

Sim, cá está ela. Pois bem, deixá-la doer. 
E a morte? Onde está ela? 
  (Tolstoi, A morte de Ivan Ilitch)

Cs, in "A Voz do Minho", Março de 2009

Regresso a Casa



Nem sempre me é fácil despir os sentimentos de metáforas e imagens para escrever apenas com aquilo que as palavras dizem. Mas há momentos em que a vida se faz tão transparente e quente que a alma permite sem prejuízo descartar-se de agasalhos que subtraem à partilha a intimidade. 
Por outro lado, nem sempre o tempo permite sentar a vida ao espelho ou observá-la pelo retrovisor. Não é todos os dias que nos permitimos a um exercício de ecologia mental. Mais do que higienizar, ser-se capaz de reciclar os fantasmas e, por cada pensamento vazio ou emoção recalcada, recriar lucidez e vontade de amar.

Somos feitos de uma substância difícil – um complexo de emoções incerto, equações de pensamentos com mais incógnitas do que aquelas que a vida consegue igualar; uma substância paradoxal em potência e na experiência concreta que desenha. É fácil deprimir, respirar ansiedade, ter medo de deixar de existir. A fragilidade substitui a resiliência sem  pedir autorização. E não são apenas as razões, as emoções, ou apenas a história. É o conjunto das circunstâncias revestido de um véu denso de incompreensões, falsas lógicas, fisiologias disfuncionais, acasos e receios. E tudo o que disso resta.

Em fases mais críticas, felizmente mais pontuais do que recorrentes, não é difícil acordar a meio da noite em sobressalto porque a bagagem que nos obrigam a carregar é demasiado pesada para que com ela se possa descansar, quanto mais caminhar com as mãos livres. O erro dos outros torna-se a má intenção que alimenta a intolerância, frustração e desconfiança. Tudo é tremendamente assustador e o medo de ter medo paralisa a mente em asfixia. (Quando isto acontece, já o coração necrosou, enfartado de relações mal digeridas.)

Como é que se atravessa uma crise? Quem nos oferece a chave que abre o sepulcro onde a alma jaz adormecida?

É sempre bom podermos contar connosco mesmos mas, como actores de uma história gratuita, precisamos de um público que dê cor ao papel que encenamos. Que esteja presente mesmo quando o pano cai. (Sem dizer adeus.)

“Nem sempre o chão da alma é seguro/ nem sempre o tempo cura qualquer dor”. 
Mas não pode haver impedimento à vida maior do que a vontade de a agarrar e realizar. 
Ninguém me impede de contornar hábitos e conceitos regrados só porque quero estar perto do lugar e das pessoas que me contam a origem do que sou, com todas as pausas e silêncios a que a proximidade obriga; de cumprimentar os meus fantasmas ou acordar de mão dada com o fermento que resta dos sonhos atirados ao mar pela  mesma força mística que os devolve quando o sol se põe; de colorir numa tela o quotidiano dos dias concretos e felizes; de desligar os ecrãs onde as sociedades e os amigos vivem em redes que tornam o diálogo míope, para pedalar ou correr sem rumo nem alertas de chegada.

Ninguém me impede de procurar a alquimia nas relações, de mim comigo mesma e com aqueles com quem divido o dia de todos os dias; de escutar esperança na dor sentida  e acordar mais cedo só para ver o sol desenhar-se no vidro da janela ou oferecer ao papel palavras que preenchem o coração e desatam mágoas que já não são úteis.

Ninguém me impede de oferecer à vida pedaços de silêncio embrulhados num cobertor de ternura como quem protege uma oração no rosto de uma criança que dorme.

Devo ter algures cravado na alma um mapa de mistérios com destino e direcção. Daí que tantas vezes pare para sentir que estou perdida.
Perdida quando tudo em mim é um regresso à casa que sou e quero ser.
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Coração paradigmático

 
Para Goleman, o reinado do QI deve ceder o lugar ao do QE (quociente emocional). «O antigo paradigma baseava-se no ideal de uma razão liberta da pressão da emoção. O novo paradigma convida-nos a harmonizar a cabeça com o coração. Devemos compreender mais precisamente o que significa:  
utilizar a emoção inteligentemente. 

in "A Inteligência do Coração", por Isabelle Filliozat