De que morte temos medo?

E a dor?, perguntou a si mesmo. Que é dela? 
Então, dor, onde estás tu? Ficou atento. 

Sim, cá está ela. Pois bem, deixá-la doer. 
E a morte? Onde está ela? 
  (Tolstoi, A morte de Ivan Ilitch)

Cs, in "A Voz do Minho", Março de 2009



Desta sociedade plastificada que nos vai moldando os dias e as vidas, já muito se disse. Mas das palavras às intenções, destas ao fazer e, por fim, ao ser e deixar-se fazer, existe um caminho demasiado longo e inacabado sempre, daí mais este dissertar sobre questões presentes mas sem tempo, como as que respeitam à idade avançada, doença, eutanásia. É no fundo, de vida e de morte que se trata, de agarrar a pessoa em todas as suas dimensões e caminhos, e o sofrer-se, acabar-se, morrer-se, são pedaços feitos da pedra que os pavimenta. 
Quando falo de plástico, refiro-me a esta tendência de mascarar a vida com a vida, vestindo-se e investindo-se num sistema de crenças e valores que se revolta, escandalizado, quando alguém afirma que a eutanásia não é a única solução para quem sofre ou se, num contexto diferente mas assente na mesma base, se afirma que o preservativo não resolve a epidemia da SIDA. Por outro lado, enquanto estes se indignam, ofendidos, contra a suposta falta de realismo, objectividade e pragmatismo de quem assim pensa e age, outros trabalham incansáveis em projectos que tragam aos hospitais e centros de saúde uma eficácia pseudo-humanizadora, em leis que fomentem ainda mais uma postura profissionalizante direccionada para os resultados alcançados, o sucesso, o brilhantismo. 
E nestas empresas de saúde, muitas das quais, também empresas de ensino, forma-se um estudante de saúde que se acredita super-heroi: longe da vida, conhece bem a doença em cada cama, mas da morte nunca ouviu falar, e o seu rosto é-lhe sempre sem nome. 
Logicamente que desta perspectiva que afunila a pessoa naquilo que de mais palpável dela se pode extrair, pouco mais sobra que uma fé inabalável na pessoa doente como inútil e finível. E é passear-se a alma pelos corredores de um hospital assim acreditado para se comprovar que a esta inutilidade também se pode chamar solidão, que ao isolamento até se pode chamar loucura e que os sós e loucos só no espaço de um cadáver cabem. Demasiado negro talvez, mas bem realista: os ineficazes esgotam-se da sanidade que os aviva porque a sociedade os faz esgoto. 
(...) Paradoxalmente, depois de se mascarar a vida com a vida em todas as suas dimensões, mascara-se a morte com a morte, um ponto final de uma frase mal feita. 
Para concluir o círculo de ideias que aqui introduzi, não poderia deixar de trazer às palavras a lentidão dos que apressados se morrem a fingir, de Pablo Neruda. Dizia este para evitarmos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar. 
Trata-se, evidentemente, de mortes diferentes: a morte de quem não vive e se deixa viver, a morte de quem vive e por isso vive. Passamos o tempo na incerteza do que é controlável, fingindo saber que nada é tão certo como a morte, mas, incrivelmente, ignoramos o fim em todas as pedras que se colocam no nosso caminho. Desconhecemos, estranhando em repúdio, as potencialidades construtivas de quem se respira a partir dos chãos, de quem se conta pelo número de fragmentos partidos das mortes que se morrem a viver:
Temos medo da morte, ou temos medo de viver?

in "A Voz do Minho", Março de 2009

Sem comentários:

Enviar um comentário