Nem sempre me é fácil despir os sentimentos de metáforas e imagens para escrever apenas com aquilo que as palavras dizem. Mas há momentos em que a vida se faz tão transparente e quente que a alma permite sem prejuízo descartar-se de agasalhos que subtraem à partilha a intimidade.
Por outro lado, nem sempre o tempo permite sentar a vida ao espelho ou observá-la pelo retrovisor. Não é todos os dias que nos permitimos a um exercício de ecologia mental. Mais do que higienizar, ser-se capaz de reciclar os fantasmas e, por cada pensamento vazio ou emoção recalcada, recriar lucidez e vontade de amar.
Somos feitos de uma substância difícil – um complexo de emoções incerto, equações de pensamentos com mais incógnitas do que aquelas que a vida consegue igualar; uma substância paradoxal em potência e na experiência concreta que desenha. É fácil deprimir, respirar ansiedade, ter medo de deixar de existir. A fragilidade substitui a resiliência sem pedir autorização. E não são apenas as razões, as emoções, ou apenas a história. É o conjunto das circunstâncias revestido de um véu denso de incompreensões, falsas lógicas, fisiologias disfuncionais, acasos e receios. E tudo o que disso resta.
Em fases mais críticas, felizmente mais pontuais do que recorrentes, não é difícil acordar a meio da noite em sobressalto porque a bagagem que nos obrigam a carregar é demasiado pesada para que com ela se possa descansar, quanto mais caminhar com as mãos livres. O erro dos outros torna-se a má intenção que alimenta a intolerância, frustração e desconfiança. Tudo é tremendamente assustador e o medo de ter medo paralisa a mente em asfixia. (Quando isto acontece, já o coração necrosou, enfartado de relações mal digeridas.)
Como é que se atravessa uma crise? Quem nos oferece a chave que abre o sepulcro onde a alma jaz adormecida?
É sempre bom podermos contar connosco mesmos mas, como actores de uma história gratuita, precisamos de um público que dê cor ao papel que encenamos. Que esteja presente mesmo quando o pano cai. (Sem dizer adeus.)
“Nem sempre o chão da alma é seguro/ nem sempre o tempo cura qualquer dor”.
Mas não pode haver impedimento à vida maior do que a vontade de a agarrar e realizar.
Ninguém me impede de contornar hábitos e conceitos regrados só porque quero estar perto do lugar e das pessoas que me contam a origem do que sou, com todas as pausas e silêncios a que a proximidade obriga; de cumprimentar os meus fantasmas ou acordar de mão dada com o fermento que resta dos sonhos atirados ao mar pela mesma força mística que os devolve quando o sol se põe; de colorir numa tela o quotidiano dos dias concretos e felizes; de desligar os ecrãs onde as sociedades e os amigos vivem em redes que tornam o diálogo míope, para pedalar ou correr sem rumo nem alertas de chegada.
Ninguém me impede de procurar a alquimia nas relações, de mim comigo mesma e com aqueles com quem divido o dia de todos os dias; de escutar esperança na dor sentida e acordar mais cedo só para ver o sol desenhar-se no vidro da janela ou oferecer ao papel palavras que preenchem o coração e desatam mágoas que já não são úteis.
Ninguém me impede de oferecer à vida pedaços de silêncio embrulhados num cobertor de ternura como quem protege uma oração no rosto de uma criança que dorme.
Devo ter algures cravado na alma um mapa de mistérios com destino e direcção. Daí que tantas vezes pare para sentir que estou perdida.
Perdida quando tudo em mim é um regresso à casa que sou e quero ser.
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