Um pouco mais de alma


porque o conhecimento não entra em competição com esquemas de tempo em contra-relógio.

E mais vale não perder,
a alma. 
(mesmo que seja apenas aquela que reside no íntimo das palavras)

Dizem que o coração tem o tamanho de um punho fechado

E quando se abre?
in A Voz do Minho, Maio 2009

(Fiel à hierarquia das memórias, mais um recanto do sótão onde recolho as palavras algures no tempo escritas.)

Se há momentos em que procuro e desenho em geometrias e filosofias a melhor linha para as palavras que aqui vos deixo, outras vezes são os sentidos que se impõem e dominam todo o caminho, trazendo por arraste, dissolvidas na memória do que fica, as palavras, como pedaços de quem dentro se respira. 
Porque afinal as páginas que vou agrafando ao tempo pouco mais são do que histórias de quem se parte e partilha, repartindo a vida partida nas palavras ditadas, pela vida. 
E é dessas vidas que falo hoje: na imagem de um punho fechado, a alma despida, os afectos, as relações, tudo isto que abrimos em nós para chegar a um outro, e o que desse outro deixamos que escave em nós. Falo de sentidos na razão, na razão como sentido, no sentido das razões. E tudo isto somos nós.

A vida que temos cá dentro, guardada e protegida em forma de medos e incertezas, tem o tamanho do que escutamos e sentimos e nos move, do que pensamos nesse sentido e direcção. Porque as pessoas que passam por nós, e a vida que nos transportam entre pontes e partilhas, em estradas percorridas em comum, lado a lado ainda que esse lado seja apenas o de dentro, não nos deixam sós. Mesmo que o tempo gaste o combustível que move o que nos liga – somos sempre, seres em relação – e fica sempre, entre cavidades e vísceras, a cinza do que foi, os fragmentos revisitados, os cheiros e o sal, as palavras ditadas por um agrafo que se agarra ao coração: de punho fechado a mão aberta e projectada, fica apenas o que somos.

E quem nos ouve, a tinta escorrida de dentro, as palavras e os sentidos expirados ao tempo que passa? Quem nos dá a mão, aberta em aconchego, em forma de quem escava no vazio, a incerteza do que somos? Quem nos desata os nós que foram laços? Quem nos abre a mão, no rumo incerto de que a agarraremos?

Ainda que de punho fechado a mão aberta e projectada fique tudo isto que somos, sabemos bem que esse caminho se faz e constrói na certeza única do incerto, é constante o abismo e bem real a dúvida. Analisamos, arquitecturamos, tentamos rebuscar os sentidos e as razões que mais nos protegem no aconchego do medo, afastamos o inesperado e o âmago da surpresa, asfixiamos o que é, escondido, com ilusões e fantasias num binómio tudo-ou-nada, vagueamos a alma sem respirar, e sentamos a vida ao espelho, até que a imagem fique desfocada e pouco nítida, de tão perto e tantas vezes a olharmos. Nisto das relações, esquecemos sempre, que mais do que o pensamento, às vezes é o tempo dentro das histórias que nos devolve o verdadeiro reflexo, o eco que nasce quando se abre e estende a mão.

Mas afinal, o que perdemos quando se abre a mão desse punho fechado? Faz-se no medo a resposta, pontuada na incerteza do que será. E só no risco pisado se descobre que as relações transcendem e reduzem a geometria da matemática: entre somas e subtracções que multiplicam a dúvida e dividem o silêncio, o que existe transforma-se, e fica sempre, mais longe de nós, mais perto do que somos. 
Lutar por desejos e conquistas sós e forçados, não só nos afasta, como reduz e apaga tudo o que nos leva a sair de nós para dar a mão. Devíamos antes ficar perto, quando perto é o abismo ou o leito de uma tempestade, do cavaleiro inteligente que, de mão dada junto ao peito, “solta as rédeas e se deixa guiar pelo instinto do cavalo”.

E das rédeas às palavras, soltam-se os dedos de uma mão trémula.



Em versão de rascunho

a pensar com lápis e borracha, 
como quem não conhece a estrada, ou não sabe ler os sinais de trânsito.

sem forma de escrever o que não pode ser dito.
sem sentido, voltar a dizer o que já foi dito.



Uma janela aberta para o rio



entre traços coloridos
e marcadores intersectados pela geometria do acaso,
em silêncio, 
as mãos cruzam a vontade e o saber.

e soltam páginas,
abertas de conceitos, mecanismos, relações.

Passa o tempo, e de vez em quando a porta abre-se para a sala,
onde jazem vivos, nas estantes erguidas,
ainda os livros,
depois de tantas mortes.

e depois de tantas horas, 

abre-se ainda uma janela para o rio,
D'ouro e concentrado de silêncios. 

silêncios que aproximam a certeza do dever cumprido,
que só a noite acolhe
e celebra.

o sono e hoje, porque não, 
o sonho. 

Em quarto crescente - parteII

O céu fechou a lua num telhado sem luz. Não se consegue ver daqui.
Chorou em silêncio,
chorou até desidratar e retomar o equilíbrio dos electrólitos e da água que perdeu.

O sol rasgou o pano, escorregou a mágoa para a nuvem mais próxima e voou para longe.
Mais longe do que é perto, mais longe do que é parte.

Depois veio a noite e de mansinho
desenhou um ponto de luz em cada constelação vazia.
Que o tempo acarinhou, sem medo de se perder. 


Up-to-know: offline


A memória é uma faculdade mental ou um processo neurológico, no mínimo, útil.

No entanto, fazer dela, (e de forma ridícula), o alvo principal de um exame de avaliação final, depois de um semestre de trabalho, aulas e estudo, não me parece, eufemísticamente, uma estratégia muito feliz.

Ainda por cima num tempo em que as bases de dados abundam nos consultórios médicos. E sabendo que não é, de todo, memorizável, a capacidade de agir com base nesses dados e naqueles que cada situação particular oferece.

Pensar, comunicar o que se pensa, agir atendendo aos anteriores. Nada disto é objecto de avaliação, directa ou indirectamente.

Supõe-se, portanto, que nada disto deva ser útil na prática clínica
(e não clínica.)

Apetece perguntar:
Where did you sleep last exam?

Em quarto crescente

a lua do outro lado da noite, o cansaço cá dentro.  uma janela comum.
não é porque sim, não é um cansaço simplesmente cansaço. 

tem nomes e lugares, causas e objectivos. é concreto.
por isso cresce, como cresce a lua, que ciclicamente se perde do tamanho que procura e constroi.

(cíclicas também as palavras, uma vez encontradas nos sentidos que as nutrem)
desta janela vê-se a lua crescer. mais longe, no tempo e no espaço, permanece talvez, acinética e serena,

como se todo o cansaço fosse em vão.  

-

como quem fotografa

- assim escrevo por vezes.

o alvo é um longínquo que passou, é ou poderá ser, sem nunca deixar de se fazer real,
real como as palavras o imitam. 

gasto o rolo conhecendo dele apenas o princípio
e o fim
(sempre à procura da certeza que a liberdade oferece)


o resto são diapositivos, (entre negativos a que a vontade assiste),
de uma arte que aprendo enquanto divago, perdida,
ou quando (me) encontro:

aqui, bem perto, uma luz tão efémera como a de um flash.

k

Nunca apagar

que sentidos na procura de um sentido



ou que sentido na vontade de sentido.
se nos basta, a ausência de sentido como único sentido possível,provável ou credível.
e que utilidade, a da lógica, traduzida em meias palavras, sofridas e incompletas da dor e dúvida que assistem.
...

“Acreditamos nos princípios mecânicos do Universo; não em milagres. 
Através da ciência, aprendemos que o lugar que habitamos é apenas um planeta duma só estrela perdida numa galáxia entre muitas outras. E tal como parecemos perdidos no meio da imensidão do universo exterior, assim a ciência nos levou a desenvolver uma imagem de nós próprios como sendo inevitavelmente governados por forças internas não sujeitas à nossa vontade – por moléculas químicas do cérebro e conflitos do subconsciente que nos obrigam a sentir e a nos comportarmos de determinadas formas quando nem sequer temos consciência do que estamos a fazer. 
Também a substituição dos nossos mitos humanos por informação científica nos causou uma sensação de ausência de sentido pessoal.
Que significado poderemos ter, como indivíduos ou como raça, dominados por forças químicas e psicologias que não compreendemos, invisíveis num Universo cujas dimensões são tão grandes que nem a nossa ciência as consegue medir? […]” 
Scott Peck, in O Caminho Menos Percorrido


Em plena época de estudo para exames


é preciso alimentar o espírito, descansar o corpo, ouvir só o que deve ser escutado.
E combater a força da entropia com a sabedoria do querer-ser.

É preciso escutar cada pedacinho de céu.
não como se fosse o último,



mas como se fosse durar para sempre.