dos pseudónimos que Deus usa quando não quer assinar
É-me cada vez mais difícil ler António Lobo Antunes sem me apetecer assaltar-lhe as palavras, escorregar-lhe dos sentidos agarrados ao corredor de uma alma que verte. Numa entrevista do mesmo autor que vi há tempos, este referia-se aos aparentes acasos da vida como “pseudónimos que Deus usa quando não quer assinar”.
É-me cada vez mais difícil ler António Lobo Antunes sem me apetecer assaltar-lhe as palavras, escorregar-lhe dos sentidos agarrados ao corredor de uma alma que verte. Numa entrevista do mesmo autor que vi há tempos, este referia-se aos aparentes acasos da vida como “pseudónimos que Deus usa quando não quer assinar”.
Não sou grande adepta de quem defende o sofrimento, ou o subscreve contracenando o papel de advogado de Deus: o sofrimento de quem realmente se sente sofrer, por ser demasiado doloroso e incapacitante; Deus, por O percepcionar demasiado intangível para ser abraçado com a razão, quanto mais com as palavras de circunstância, atiradas ao vento que passa.
Não obstante, também me parece algo absurdo aceitar que a nossa história se resume a um puzzle de peças que não encaixam, inacabado desde sempre...
No mês passado, o Correio da Manhã dava a notícia de que uma mulher grávida aconselhada a procurar apoio psiquiátrico por estado depressivo, havia sido violada no consultório do psiquiatra a quem se dirigiu. Palavras que a traduzirem factos não podem deixar de escandalizar. Mais até porque, sendo a psiquiatria um assunto de que todos fogem, (embora correndo na direcção oposta quando dela necessitam), uma notícia deste calibre pode alimentar esse receio-preconceito, que existe sempre face ao menos conhecido ou menos experimentado.
Este episódio noticiado lembrou-me umas das histórias intersectadas por Pedro Almodóvar no filme “Hable con ella”. O protagonista, Benigno de nome, exercia cuidados de enfermagem a uma doente em estado vegetativo, que acaba por engravidar. Com o peso da asfixia do acto, suicida-se. A quem acompanhava vidas vegetais como ele, dizia e repetia das palavras vertidas pela ternura que cuida e cura: fala com ela.
Juntei estas peças, fora do acaso. Porque todas fazem luz sobre as susceptibilidades e vulnerabilidades patentes numa relação cuidador/pessoa a ser cuidada, como o são as relações médico/doente, enfermeiro/doente. No caso concreto da psiquiatria, a relação é ainda mais peculiar, pela habitual superioridade mental a priori atribuída ao psiquiatra, no preciso momento em que tem perante si alguém que recorre aos seus serviços por sentimentos de incapacidade, ainda que por vezes apenas pontualmente, e que o colocam num extremo de fragilidade.
Sabemos que muito das relações humanas se constrói precisamente em situações limite. E o psiquiatra, possivelmente num outro extremo, também não é de todo alheio a essa vulnerabilidade, bem pelo contrário. Sabe que tem que investir algo de si no cuidado necessário, quase sempre incerto da medida necessária para que a relação terapêutica se estabeleça com sucesso.
Por isso mesmo, os cuidadores são também susceptíveis às lacunas de um investimento que se quer desinteressado, porque quando não é bem gerido, pode levar ao desgaste, físico, mental e/ou emocional. Diz-se às vezes que quem cuida precisa de ser cuidado. Um quase axioma dos cuidados que vai sendo cada vez melhor reconhecido e aceite pelas classes profissionais em questão.
Comecei por falar dos pseudónimos usados por Deus, seguidamente pincelei dois retratos em que os cuidadores pisaram um risco eticamente inaceitável, e finalizei salientando essas vulnerabilidades inerentes à relação singular e única entre médico e doente.
Sem acasos, disse. É que tudo parece pincelado sem as tintas certas quando olhamos limitados apenas para os traços inacabados de um retrato, belo se formos capazes de o assinar por baixo, reconhecendo-lhe o nome e a história.
Ao jeito da criança, frágil, que monta um castelo sem saber, com a cor dos legos escolhidos, ao acaso…
Célia in "A Voz do Minho", Dezembro 09
Uma palavra de agradecimento (a quem de direito) pela conversa que motivou parte dos assuntos aqui abordados.
imagem:http://portalliteral.terra.com.br/_blogs/multiplas/1232581012_antonio_lobo_antunes.jpg
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